terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Bar é poesia (Poemeto cínico)




Poemeto cínico




(luiz alfredo motta fontana)






Com estridência,
em seu tom gutural,
esboçava risadas.

A cada tragada,
arqueava os ombros,
cobertos em cambraia branca

Afinal...
seus instintos reprimidos,
e jamais confessados,
de donzela quase invícta,
testemunharam:

A última dança do casal,
um bolero singular,
um prá lá, um prá cá!

Bar é prosa (Em nome da Comenda)




Em nome da Comenda





(luiz alfredo motta fontana)





Francesco Altileme Filho, era herdeiro, do nome, do sobrenome, e de regras de comportamento.

Herança envolvente, asfixiante, duradoura, da qual ousava escapar, somente, na privacidade da "sala de música", envolta em paredes de cortiça, pesadas cortinas e poltronas de outrora, revestidas em couro.

Em outros cômodos, ou na rua, era sempre o herdeiro, do primeiro Francesco, que em dia de glória, adquirira o sonhado título de Comendador, data que culminou com o jantar planejado, tendo como convidado principal, Dom Giuzeppe, “o Breve”, Bispo de larga fronte e enormes costados.

Homem feito e refeito, embora ainda sob o peso da herança, Francesco vencera, pertencia ao mundo empreendedor, brilhava em reuniões, como o principal executivo, da filial paulista, de robusta empresa européia.

Ao estacionar na vaga perfeita, do supermercado das manhãs de domingo, uma pequena lembrança lhe acometeu, quase que ouvia o barulho, infantil, do chacoalhar da caixa de papelão.

Em meio ao labirinto de corredores e gôndolas, qual aventureiro em terras longínquas, sentia o gosto do conteúdo, desfazendo-se no céu da boca.

Abraçado ao objeto de desejo, quase não percebeu o olhar , entre curioso e sarcástico, que Altaneira Venâncio, Diretora de Marketing, sala ao lado da sua, lançava, ora para seu rosto distraído, ora para a escandalosa caixa ilustrada.

Ao responder o “Bom Dia”, um tanto quanto estridente, encontrou a solução, qual mágica, vinda de sua, elogiada e reconhecida, capacidade de reação e improvisação frente aos desafios de mercado.

E, com ar professoral, discorreu sobre singela receita, do que chamava, “Filé do Comendador”.

Aproveitando-se da proximidade do balcão de cortes bovinos especiais, escolheu com enfado a embalagem de “tournedos” de filé, e dois passos à frente, um vidro de maionese light.

Naquela tarde, enquanto buscava o conforto no barroco de Bach, sorria ao imaginar o sucesso da receita.



“Filé do Comendador”



Ingredientes:

- quatro tournedos de filé
- sucrilhos tradicionais (o da caixa da infância)
- maionese light


Preparo:

- untar os tournedos com maionese
- após, passá-los numa vasilha contendo sucrilhos
- levar ao forno médio

Servir acompanhado de escarolas cozidas, ao tempero de azeite.




Francesco manteve sua postura, com pitadas de excentricidade.

A tigelinha de ágata, comprada na feirinha de antiguidades, repousava ao lado, úmida de leite, e pontuada de sucrilhos.

Bar é prosa (O cinema, o domingo, as moças, os sonhos...)




O cinema, o domingo, as moças, os sonhos...




(luiz alfredo motta fontana)





Vila Santana, anos sessenta, população pequena, a praça em frente à igreja, a rua principal, com todos os bares, o Correio, ao lado a única agência bancária.

O domingo era todo descanso, calmo, o som do Serviço Municipal, substituia o chiado dos rádios a válvula, desfilando boleros, mambos, valsas e sambas-canções.

A noitinha o murmurinho na praça, frente à igreja, anunciava a sessão semanal do pequeno cinema, um sucesso com Victor Mature, ou Randolph Scott.

As moças, e como eram belas as moças da época, caminhavam no sentido horário, alternando risos breves, com cochichos e ares de anjos. Os moços, por sua vez, em harmônica e estudada indiferença, caminhavam em sentido inverso, escondendo intenções entremeadas com apelos.

Laquês, rouges, saias plissadas, de um lado; de outro, botas e botinas engraxadas, dois ou três sapatos de bico fino, isqueiros Ronson, ou Zenith, um ou outro chapéu, estes sempre em parceria com lenços amarrados no pescoço.

Os sonhos, embalados com "Caubys", "Angêlas", e até mesmo "Galhardos" distraídos, dirigiam-se, por fim, lenta e ordenadamente, para a bilheteria.

Quando cheio o salão, as cortinas fechavam, o Canal 100, desfilava novidades da capital, o trailer convidava ao programa da semana seguinte, e por fim, o velho e bom sucesso da Metro ou Columbia, iniciava.

Quantos papéis de balas lançados no corredor, quantas lágrimas sensíveis em lenços finos colhidas?

Após a sessão, a magia rotineira, sem que se percebesse, as ruas restavam vazias, apenas o sobrevoo de um ou outro pássaro noturno, ou então, o deslisar, rente aos muros, dos gatos em ciranda conhecida.

Vila Santana adormecia, pronta para o amanhecer em renovada labuta campestre, por caminhos nem sempre firmes, em atoleiros que desafiavam os mais hábeis, em campos e pastos a serem cotidianamente conquistados.

Hoje, em contraponto, "Matures" já não são lembrados, "Caubys" mal frequentam o Brahma, meninas usam blush, domingos, por sua vez, terminam em angústia que precede as segundas sem prazeres.

- Alguém viu minha Crush?